Artigo publicado no SEFE 11 (setembro de 2025)
RESUMO: Este estudo apresenta um caso de reprotensão de cabos de cordoalha em uma obra de contenção, destacando a inovação aplicada para viabilizar a validação de cargas em tirantes previamente instalados sem rabicho disponível. Os tirantes são elementos estruturais fundamentais responsáveis por transmitir esforços de tração entre suas extremidades. Sua composição inclui três principais trechos: cabeça, ancorado e livre, sendo acionados pelo comprimento adicional (rabicho), que permite a tração e a protensão do sistema. No entanto, neste caso específico, o rabicho foi indevidamente seccionado em um ponto que inviabilizava qualquer tentativa de reprotensão ou validação da carga. A necessidade de reavaliação das cargas em cortinas de contenção pode surgir em diversas situações, como movimentação anômala da estrutura, acidentes durante a execução da obra (seja por falha humana ou impacto de máquinas) ou, ainda, para verificar se os tirantes atingiram sua carga de trabalho após as escavações dos níveis previstos no projeto. Diante desse desafio, desenvolveu-se um dispositivo inovador que possibilitou a reconstrução do rabicho a partir do tirante existente, permitindo a reprotensão sem a necessidade de substituição completa do elemento estrutural. Essa solução representou um avanço técnico e econômico significativo, garantindo a segurança e a estabilidade da contenção sem a necessidade de intervenções mais complexas e onerosas. Este caso, ocorrido na obra localizada em Cajamar – SP, exemplifica a importância da adaptação e inovação na engenharia geotécnica, proporcionando maior eficiência e segurança na manutenção e revalidação de tirantes em obras de infraestrutura.
1. Introdução
As obras de contenção são essenciais para garantir a estabilidade de taludes e estruturas em terrenos com potencial de movimentação. Entre os elementos estruturais mais empregados nesses sistemas estão os tirantes ancorados, responsáveis por resistir aos esforços de tração e garantir a integridade da contenção. As protensões nesses elementos ocorrem por meio de um comprimento adicional conhecido como rabicho, que permite a aplicação de cargas controladas.
Entretanto, situações adversas em campo podem comprometer o procedimento convencional, exigindo soluções inovadoras para manter a segurança e eficiência da obra. Este artigo apresenta um estudo de caso referente à reprotensão de cabos de cordoalha em uma obra de contenção localizada em Cajamar/SP, onde o rabicho dos tirantes havia sido indevidamente seccionado, inviabilizando os métodos tradicionais de validação de carga.
O caso demonstrou a importância da adaptação de técnicas geotécnicas para situações imprevistas, culminando no desenvolvimento de um dispositivo inovador que permitiu a reconstrução do rabicho e a posterior reprotensão dos tirantes, evitando a substituição integral dos elementos estruturais.
2. Contextualização técnica
2.1 Tirantes ancorados: componentes e funcionamento
Os tirantes são compostos por três trechos principais:
- Cabeça: Responsável por transmitir as cargas de tração à estrutura de contenção (ex.: cortina atirantada).
- Trecho Livre: Região onde os cabos de cordoalha permanecem sem aderência ao terreno, permitindo a alongação e tensionamento controlado.
- Trecho Ancorado: Área onde ocorre a aderência entre o solo e a armadura por meio de injeção de calda de cimento, promovendo a ancoragem.
A protensão é realizada por meio do rabicho, extensão do cabo que ultrapassa a face de contenção, permitindo a aplicação de carga com auxílio de macacos hidráulicos e equipamentos de leitura de movimentação.

2.2 Problemática identificada
No caso em estudo, constatou-se o corte indevido do rabicho dos tirantes, impedindo a aplicação das cargas de protensão e comprometendo os mecanismos usuais de controle e validação definidos para sistemas atirantados. O rabicho — trecho de cordoalha excedente que ultrapassa a cabeça do tirante — é essencial para que se realize a protensão com auxílio de macacos hidráulicos, conforme mencionado pela ABNT NBR 5629:2018, a qual estabelece que todo tirante ativo deve permitir a aplicação de carga de teste e de protensão inicial conforme as etapas construtivas.
A perda desse segmento inviabilizou:
- Reprotensão do sistema, fundamental para o ajuste das forças internas após etapas críticas da obra, como escavações parciais ou mudanças nas condições de carregamento;
- Validação das cargas de trabalho, por meio de ensaios de recebimento ou de desempenho (método direto ou por extrapolação de carga), essenciais para garantir que o tirante atingiu os parâmetros exigidos pelo projeto geotécnico;
- Monitoramento do desempenho pós-escavação, que deve considerar possíveis redistribuições de esforços ou relaxações nas cordoalhas, além de permitir inspeções periódicas conforme as diretrizes de manutenção da estrutura.
Além disso, a inviabilidade de aplicar cargas de ensaio compromete a verificação do coeficiente de segurança global da cortina, podendo gerar incertezas quanto à resistência última da ancoragem e à eficiência da interface solo/injeção, especialmente nos trechos ancorados. Tais ações são obrigatórias ou recomendadas pela norma para controle da qualidade e estabilidade em sistemas de contenção com tirantes ativos.
Esse cenário apresenta risco técnico relevante: sem a possibilidade de avaliar e reajustar a carga nos elementos trativos, qualquer manifestação patológica na estrutura — como recalques, trincas, deformações excessivas ou deslocamentos laterais do paramento — não pode ser adequadamente diagnosticada ou mitigada por ajustes nas forças internas. A cortina de contenção, por sua vez, passa a operar sem garantias de desempenho, aumentando a suscetibilidade a falhas progressivas em caso de sobrecargas acidentais, variações hidrogeológicas ou impactos externos.
Dessa forma, a falha na manutenção da integridade dos rabichos representa uma não conformidade crítica, pois impede o cumprimento de etapas essenciais de controle da obra, como os ensaios de protensão e os testes de reaplicação de carga. Essa condição compromete não apenas a segurança estrutural, mas também a rastreabilidade e a confiabilidade do sistema, exigindo uma solução técnica específica para recuperar a capacidade funcional dos tirantes existentes, em conformidade com os critérios de projeto e execução estabelecidos pela NBR 5629.

3. Metodologia e passo a passo da intervenção
A intervenção executada para viabilizar a reprotensão dos tirantes com rabichos seccionados seguiu critérios técnicos rigorosos, visando restabelecer a funcionalidade dos elementos estruturais sem comprometer a estabilidade da cortina. As etapas descritas a seguir foram elaboradas com base nos princípios estabelecidos pela ABNT NBR 5629:2018, que orienta o projeto, execução e controle de tirantes ancorados no terreno.
3.1 Identificação da não conformidade e avaliação inicial
Inicialmente, foi realizada uma inspeção visual e técnica para identificar os tirantes comprometidos. A ausência de rabichos inviabilizou a verificação das cargas aplicadas, tornando necessária uma avaliação geotécnica preliminar da contenção, com apoio de análises retroativas de projeto, revisão das curvas de carga e deformação previstas e investigação dos registros de execução.
Foi considerada também a classe do tirante e sua função estrutural (permanente ou provisório), conforme classificação prevista na norma. Esta etapa teve como objetivo definir o nível de intervenção necessário para recuperar a confiabilidade do sistema.
3.2 Desenvolvimento do dispositivo inovador
Com o objetivo de viabilizar a reprotensão de tirantes cujo rabicho havia sido indevidamente seccionado, foi desenvolvido um dispositivo mecânico inovador, especialmente projetado para restabelecer a funcionalidade do sistema de ancoragem sem comprometer a integridade estrutural do tirante. A solução adotada permitiu:
- Reconstruir o rabicho por meio da conexão segura a partir da cordoalha exposta, utilizando um sistema de acoplamento de alta resistência, com travamento mecânico entre cunhas e barra;
- Preservar a integridade do trecho livre e do trecho ancorado, assegurando que não houvesse introdução de esforços excêntricos ou descontinuidades no caminho de carga, respeitando os parâmetros de comportamento elástico e a continuidade da transmissão de esforço axial;
- Permitir a aplicação de cargas de protensão de forma controlada, utilizando equipamento hidráulico compatível, e habilitar o monitoramento subsequente do desempenho estrutural do tirante, possibilitando reavaliações futuras por meio de instrumentação complementar, conforme diretrizes da ABNT NBR 5629:2018.
A inovação consistiu não apenas na configuração física do dispositivo, mas também na sua aplicação prática em campo, possibilitando intervenções localizadas, de baixo impacto, sem necessidade de substituição integral do tirante ou escavações invasivas. O sucesso na utilização desta solução técnica representa um avanço significativo na manutenção e reabilitação de sistemas atirantados em obras de infraestrutura.


3.3 Execução do processo de reprotensão
Após a reconstituição do rabicho por meio do dispositivo de conexão mecânica, procedeu-se à execução da reprotensão, respeitando as diretrizes estabelecidas pela ABNT NBR 5629:2018. O processo seguiu uma sequência rigorosa de atividades, com ênfase na segurança, controle de cargas e integridade estrutural do sistema.
A protensão foi realizada utilizando macaco hidráulico com célula de carga acoplada, permitindo a leitura precisa da força aplicada e dos deslocamentos associados. A carga foi aplicada gradualmente, em etapas, até atingir a carga de protensão de trabalho especificada em projeto, observando-se o comportamento do sistema quanto ao alongamento, deslocamentos residuais e eventuais anomalias. Foram adotados procedimentos de ensaio de recebimento pós-reabilitação, com verificação da curva carga × deslocamento e controle de recalibração do sistema. A estabilização da carga e a ausência de deformações plásticas excessivas confirmaram o bom desempenho da intervenção. Após o tensionamento final, os clavetes de ancoragem foram travados.
Este processo permitiu reativar os tirantes originalmente comprometidos, restaurando a capacidade de tração e assegurando o cumprimento dos critérios de desempenho estrutural da contenção, conforme os parâmetros normativos e os objetivos do projeto executivo.




Figura 4. (a) Representação da montagem do bloco nas cordoalhas seccionadas; (b) Montagem de barra no bloco; (c) Montagem do conjunto para protender; (d) Representação do conjunto montado para execução da protensão no tirante.
4. Caso de sucesso: Obra em Cajamar (SP)
Na obra de contenção em Cajamar/SP, o seccionamento indevido do rabicho de diversos tirantes comprometeu a possibilidade de reprotensão, validação de cargas e monitoramento do desempenho, colocando em risco a estabilidade da estrutura. Para evitar a substituição completa dos tirantes — o que causaria alto custo e atrasos significativos — foi desenvolvido um dispositivo inovador capaz de reconectar-se às cordoalhas remanescentes, viabilizando a reprotensão conforme os critérios da NBR 5629:2018.
A intervenção seguiu procedimentos normativos, com aplicação controlada de cargas, ensaios de recebimento e monitoramento dos deslocamentos. Os resultados foram positivos: os tirantes reabilitados apresentaram desempenho compatível com elementos novos, comprovando a eficiência da solução. Além de restaurar a funcionalidade estrutural, o uso do dispositivo proporcionou economia de recursos, manutenção do cronograma da obra e redução do impacto ambiental, destacando-se como um caso de sucesso em inovação aplicada à engenharia geotécnica.
5. Conclusão
A intervenção geotécnica descrita neste estudo demonstra, de forma clara e fundamentada, a viabilidade técnica da reprotensão de tirantes com cordoalhas seccionadas, por meio da reconstrução do rabicho utilizando um dispositivo especialmente projetado para essa finalidade. A aplicação bem-sucedida dessa solução em uma obra de contenção no município de Cajamar/SP evidencia que é possível, com engenharia aplicada e abordagem criteriosa, restaurar a funcionalidade de tirantes ancorados sem a necessidade de substituição integral, mesmo em situações onde o método convencional de protensão é inviabilizado.
A recuperação do sistema de contenção foi feita com rigor técnico, garantindo a continuidade do esforço de tração ao longo da cordoalha e a compatibilidade de deformações entre os diferentes componentes do tirante. Foram observados, durante e após a reprotensão, deslocamentos compatíveis com os parâmetros de projeto, validando a eficácia do acoplamento mecânico e da nova ancoragem de carga.
A execução cuidadosa do procedimento permitiu a preservação das características do trecho livre — zona crítica para o controle da elongação e da redistribuição de tensões — e do trecho ancorado, cuja integridade é vital para a transferência de carga ao maciço de solo ou rocha. O uso de instrumentação geotécnica complementar, como células de carga, extensômetros e sistemas de leitura remota, foi fundamental para o monitoramento em tempo real da resposta estrutural da cortina após a reaplicação das tensões.
Além disso, a intervenção trouxe benefícios significativos sob os aspectos operacionais e econômicos. A solução evitou perfurações adicionais, minimizou o risco de danos à infraestrutura adjacente e reduziu o tempo de intervenção, fatores especialmente relevantes em obras urbanas ou com cronogramas restritos.
Do ponto de vista normativo e acadêmico, o caso reforça a necessidade de se avançar na padronização de metodologias de reprotensão em tirantes existentes, especialmente em contextos onde intervenções corretivas são cada vez mais frequentes devido à complexidade crescente das obras e à convivência com infraestruturas antigas. Estudos adicionais, tanto laboratoriais quanto em campo, são recomendáveis para avaliar a durabilidade das conexões reconstituídas, a resistência à fadiga dos componentes mecânicos de acoplamento e a resposta do sistema sob carregamentos cíclicos e condições de longo prazo.
Em síntese, a reprotensão de tirantes com reconstrução do rabicho mostrou-se uma alternativa segura, tecnicamente robusta e economicamente racional. A experiência relatada neste artigo contribui com o corpo técnico da engenharia geotécnica ao apresentar uma metodologia inovadora, replicável e adaptável a diversos cenários de obra, ampliando as possibilidades de manutenção, reabilitação e prolongamento da vida útil de contenções estruturais atirantadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Associação Brasileira de Normas Técnicas (2018). NBR 5629. Tirantes Ancorados no Terreno – Projeto e Execução. Rio de Janeiro.
Post-Tensioning Institute (2014). PTI DC35.1-14 Recommendations for Prestressed Rock and Soil Anchors – Corrosion Protection p. 23 -36